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Texto: Na canoa do antropólogo

A malária e o sol escaldante pontuaram a traumática experiência

do jovem antropólogo que, entre os aweti, no Xingu, em 1971,

fazia sua pesquisa de mestrado. Deitada “em um lago de sangue",

a índia foi declarada morta pelo pajé, enquanto seu bebê recémnascido

chorava perto do fogo. A criança, esclareceu um índio, seria

enterrada viva junto com a mãe, enquanto as labaredas terminariam

de consumir a oca e os pertences da falecida. Diante disso,

consumido pela febre, o antropólogo agarrou o bebê e, auxiliado

por sua mulher grávida, uma estudante universitária de antropologia,

protegeu-o por dois dias em sua rede, à espera da canoa que

os levaria ao posto indígena.

Deve-se violar uma prática tradicional em nome do princípio da

vida? Essa pergunta, a mesma que atormenta até hoje o antropólogo

George Zarur, um amigo dileto, ressurge sob outra forma na

polêmica sobre o Projeto de Lei 1.057, destinado a coibir o infanticídio

entre os índios. À primeira vista, o dilema envolve os conceitos de

cultura e direitos humanos.

Numa canoa remada por índios remunerados por contas de

colares, ao longo de 12 horas, o casal de antropólogos abrigou a

criança “da chuva, do sol e dos ramos da beira dos canais que

unem a aldeia Aweti ao Posto Leonardo Villas-Boas". Finalmente,

Marina Villas-Boas recolheu o indiozinho desidratado e o encaminhou

para adoção. [...] O PL 1.057 ganhou a alcunha de Lei Muwaji

para celebrar a índia amazonense Muwaji Suruwahá, que enfrentou

sua tribo a fim de salvar a vida da filha nascida com paralisia

cerebral.

[...] O infanticídio indígena vitima gêmeos e crianças cujas mães

são solteiras ou morreram no parto, assim como as que nascem com

deficiências. Na origem da norma encontram-se as estratégias de

sobrevivência de grupos humanos acossados permanentemente

pela escassez. Nesse contexto, o leite materno e os cuidados com

os recém-nascidos são bens limitados e, portanto, valiosos. Há lógica

na prática do infanticídio, mas isso não é motivo para perenizá-la.

A unidade indissolúvel entre mãe e filho, na vida e na morte,

justifica-se sob a premissa do modo de vida tradicional. Mas o cená-

rio altera-se por completo na hora em que o grupo indígena passa

a interagir com a sociedade moderna circundante, que assume a

obrigação de prover-lhe serviços essenciais de saúde, inclusive

leite para os recém-nascidos, vacinação e tratamentos médicos.

O PL 1.057 foi aprovado na Câmara e tramita no Senado. Há

quem a classifique como instrumento de criminalização dos índios.

Mas, a Lei Muwaji diz que o dever das autoridades é demover o

grupo indígena, “sempre por meio do diálogo", da persistência na

prática do infanticídio, protegendo a criança pela “retirada provisó-

ria" do convívio do grupo antes de seu encaminhamento a programas

de adoção. Além disso, obviamente, ela não cancela o princípio

jurídico da inimputabilidade do indígena, que impede a criminalização

de atos derivados da observância de normas entranhadas na tradi-

ção do grupo. Na verdade, ao estabelecer a obrigação de comunicar

o risco da eliminação de crianças, o PL 1.057 não criminaliza os

índios, mas os agentes públicos que, pela omissão deliberada,

acobertam violações ultrajantes dos direitos humanos.

Eu, que não tenho religião, enxergo nessa crítica preconceituosa

um outro tipo de fundamentalismo: a veneração da cultura como um

totem imemorial. E, como tantos outros, religiosos ou não, prefiro ver

na canoa que salvou o indiozinho do Xingu uma metáfora para o

diálogo entre culturas.

Demétrio Magnoli. O Globo, 22/10/2015. Disponível em http://oglobo.globo.com/opiniao/nacanoa-do-antropologo-17842818#ixzz3xSXXFoDB.

Adaptado

O prefixo inicial do substantivo inimputabilidade (penúltimo

parágrafo) está presente, com o mesmo valor semântico, na

seguinte palavra do texto:

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