A partida de trem
Marcava seis horas da manhã. Angela Pralini pagou
o táxi e pegou sua pequena valise. Dona Maria Rita de
Alvarenga Chagas Souza Melo desceu do Opala da
filha e encaminharam-se para os trilhos. A velha bem-
vestida e com joias. Das rugas que a disfarçavam saía
a forma pura de um nariz perdido na idade, e de uma
boca que outrora devia ter sido cheia e sensível. Mas
que importa? Chega-se a um certo ponto — e o que foi
não importa. Começa uma nova raça. Uma velha não
pode comunicar-se. Recebeu o beijo gelado de sua filha
que foi embora antes do trem partir. Ajudara-a antes a
subir no vagão. Sem que neste houvesse um centro, ela
se colocara do lado. Quando a locomotiva se pôs em
movimento, surpreendeu-se um pouco: não esperava
que o trem seguisse nessa direção e sentara-se de
costas para o caminho.
Angela Pralini percebeu-lhe o movimento e perguntou:
— A senhora deseja trocar de lugar comigo?
Dona Maria Rita se espantou com a delicadeza,
disse que não, obrigada, para ela dava no mesmo.
Mas parecia ter-se perturbado. Passou a mão sobre o
camafeu filigranado de ouro, espetado no peito, passou
a mão pelo broche, Seca. Ofendida? Perguntou afinal a
Angela Pralini:
— É por causa de mim que a senhorita deseja trocar
de lugar?
LISPECTOR, C. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980 (fragmento).
A descoberta de experiências emocionais com base
no cotidiano é recorrente na obra de Clarice Lispector.
No fragmento, o narrador enfatiza o(a)
Ele se aproximou e com a voz cantante de nordestino
que a emocionou, perguntou-lhe:
― E se me desculpe, senhorinha, posso convidar a
passear?
― Sim, respondeu atabalhoadamente com pressa,
antes que ele mudasse de ideia.
― E se me permite, qual é mesmo a sua graça?
― Macabea.
― Maca ― o quê?
― Bea, foi ela obrigada a completar.
― Me desculpe mas até parece doença, doença
de pele.
― Eu também acho esquisito mas minha mãe botou
ele por promessa a Nossa Senhora da Boa Morte se
eu vingasse, até um ano de idade eu não era chamada
porque não tinha nome, eu preferia continuar a nunca ser
chamada em vez de ter um nome que ninguém tem mas
parece que deu certo — parou um instante retomando o
fôlego perdido e acrescentou desanimada e com pudor
― pois como o senhor vê eu vinguei... pois é...
[...]
Numa das vezes em que se encontraram ela afinal
perguntou-lhe o nome.
― Olímpico de Jesus Moreira Chaves ― mentiu
ele porque tinha como sobrenome apenas o de Jesus,
sobrenome dos que não têm pai. [...]
― Eu não entendo o seu nome ― disse ela. ―
Olímpico?
Macabea fingia enorme curiosidade escondendo
dele que ela nunca entendia tudo muito bem e que isso
era assim mesmo. Mas ele, galinho de briga que era,
arrepiou-se todo com a pergunta tola e que ele não
sabia responder. Disse aborrecido:
― Eu sei mas não quero dizer!
― Não faz mal, não faz mal, não faz mal... a gente
não precisa entender o nome.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1978 (fragmento).
Na passagem transcrita, a caracterização das personagens e o diálogo que elas estabelecem revelam alguns aspectos centrais da obra, entre os quais se destaca a
"De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro de roupa. Miguilim saudou, pedindo a bênção. O
homem trouxe o cavalo cá bem junto. Ele era de óculos, corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.
— Deus te abençoe, pequenino. Como é teu nome?
— Miguilim. Eu sou irmão do Dito.
— E o seu irmão Dito é o dono daqui?
— Não, meu senhor. O Ditinho está em glória.
O homem esbarrava o avanço do cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia:
— Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guarda... Mas que é que há, Miguilim?
Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.
— Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em tua casa?
— É Mãe, e os meninos...
Estava Mãe, estava tio Terez, estavam todos. O senhor alto e claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era um camarada.
O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: —Miguilim, espia daí: quantos dedos da
minha mão você está enxergando? E agora?"
ROSA, João Guimarães. Manuelzão e Miguilim. 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
Esta história, com narrador observador em terceira pessoa, apresenta os acontecimentos da perspectiva de Miguilim. O fato de
o ponto de vista do narrador ter Miguilim como referência, inclusive espacial, fica explicitado em: